“Só
o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência
dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Porque
só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos
é capaz de sobreviver.” A afirmação é do presidente do Supremo Tribunal
Federal, ministro Cezar Peluso, último a votar no julgamento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) em que a
Corte rejeitou o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) por uma
revisão na Lei da Anistia (Lei nº 6683/79).
A Ordem pretendia que a Suprema Corte anulasse o perdão dado aos
representantes do Estado (policiais e militares) acusados de praticar
atos de tortura durante o regime militar. O caso foi julgado
improcedente por 7 votos a 2.
O voto vencedor foi do ministro Eros Grau, relator do processo.
Ontem, ele fez uma minuciosa reconstituição histórica e política das
circunstâncias que levaram à edição da Lei da Anistia e ressaltou que
não cabe ao Poder Judiciário rever o acordo político que, na transição
do regime militar para a democracia, resultou na anistia de todos
aqueles que cometeram crimes políticos e conexos a eles no Brasil entre
2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Além do ministro Eros Grau, posicionaram-se dessa maneira as
ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie, e os ministros
Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso.
Defenderam uma revisão da lei, alegando que a anistia não teve
“caráter amplo, geral e irrestrito”, os ministros Ricardo Lewandowski e
Ayres Britto. Para eles, certos crimes são, pela sua natureza,
absolutamente incompatíveis com qualquer idéia de criminalidade
política pura ou por conexão.
O ministro Dias Toffoli não participou do julgamento porque estava à
frente da Advocacia Geral da União à época em que a ação foi ajuizada e
chegou a anexar informações ao processo. O ministro Joaquim Barbosa
está de licença médica.
Último voto
O último voto proferido foi o do presidente da Corte, ministro Cezar
Peluso. Ele iniciou dizendo que nenhum ministro tem dúvida sobre a
“profunda aversão por todos os crimes praticados, desde homicídios,
sequestros, tortura e outros abusos – não apenas pelos nossos regimes
de exceção, mas pelos regimes de exceção de todos os lugares e de todos
os tempos”.
Contudo, a ADPF não tratava da reprovação ética dessas práticas, de
acordo com Peluso. A ação apenas propunha a avaliação do artigo 1º
(parágrafos 1º e 2º) da Lei de Anistia e da sua compatibilidade com a
Constituição de 1988. Ele avaliou que a anistia aos crimes políticos é,
sim, estendida aos crimes “conexos”, como diz a lei, e esses crimes são
de qualquer ordem. Para o presidente da Corte, a Lei de Anistia
transcende o campo dos crimes políticos ou praticados por motivação
política.
Peluso destacou seis pontos que justificaram o seu voto pela
improcedência da ação. O primeiro deles é que a interpretação da
anistia é de sentido amplo e de generosidade, e não restrito. Em
segundo lugar, ele avaliou que a norma em xeque não ofende o princípio
da igualdade porque abrange crimes do regime contra os opositores tanto
quanto os cometidos pelos opositores contra o regime.
Em terceiro lugar, Peluso considerou que a ação não trata do chamado
“direito à verdade histórica”, porque há como se apurar
responsabilidades históricas sem modificar a Lei de Anistia. Ele
também, em quarto lugar, frisou que a lei de anistia é fruto de um
acordo de quem tinha legitimidade social e política para, naquele
momento histórico, celebrá-lo.
Em quinto lugar, ele disse que não se trata de caso de autoanistia,
como acusava a OAB, porque a lei é fruto de um acordo feito no âmbito
do Legislativo. Finalmente, Peluso classificou a demanda da OAB de
imprópria e estéril porque, caso a ADPF fosse julgada procedente, ainda
assim não haveria repercussão de ordem prática, já que todas as ações
criminais e cíveis estariam prescritas 31 anos depois de sancionada a
lei.
Peluso rechaçou a ideia de que a Lei de Anistia tenha obscuridades,
como sugere a OAB na ADPF. “O que no fundo motiva essa ação [da OAB] é
exatamente a percepção da clareza da lei”. Ele explicou que a prova
disso é que a OAB pede exatamente a declaração do Supremo em sentido
contrário ao texto da lei, para anular a anistia aos agentes do Estado.
Sobre a OAB, aliás, ele classificou como anacrônica a sua proposição
e disse não entender por que a Ordem, 30 anos depois de exercer papel
decisivo na aprovação da Lei de Anistia, revê seu próprio juízo e refaz
seu pensamento “numa consciência tardia de que essa norma não
corresponde à ordem constitucional vigente”.
Ao finalizar, Peluso comentou que “se é verdade que cada povo
resolve os seus problemas históricos de acordo com a sua cultura, com
os seus sentimentos, com a sua índole e também com a sua história, o
Brasil fez uma opção pelo caminho da concórdia”.
O presidente do Supremo declarou, ainda, que “uma sociedade que
queira lutar contra os seus inimigos com as mesmas armas, com os mesmos
instrumentos, com os mesmos sentimentos está condenada a um fracasso
histórico”.
Fonte: STF